6 de fevereiro de 2011

Reconhecimento do amor


Amiga, como são desnorteantes os caminhos da amizade.

Apareceste para ser o ombro suave

onde se reclina a inquietação do forte

( ou que forte se pensava ingenuamente ).

Trazias nos olhos pensativos a bruma da renúncia:

não querias a vida plena,

tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,

não pedias nada,

não reclamavas teu quinhão de luz.

E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.

Descansei em ti meu feixe de desencontros

e de encontros funestos.

Queria talvez - sem o perceber, juro –

sadicamente massacrar-te

sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam

desde a hora do nascimento,

senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,

ou mais longe, desde aquele momento intemporal

em que os seres são apenas hipóteses não formuladas

no caos universal.

Como nos enganamos fugindo ao amor!

Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar

sua espada coruscante, seu formidável

poder de penetrar o sangue e nele imprimir

uma orquídea de fogo e lágrimas.

Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu

Em doçura e celestes amavios.

Não queimava, não siderava; sorria,

Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso,

Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor

Que trazia para mim e que teus dedos confirmavam

Ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,

o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,

quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.

Amiga, amada, amada amiga, assim o amor

dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo

Com olhar pervagante e larga ciência das coisas.

Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,

e a pura essência em que nos transmutamos dispensa

alegorias, circunstâncias, referências temporais,

imaginações oníricas,

o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,

as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,

todas as imposturas da razão e da experiência,

para existir em si e por si,

à revelia de corpos amantes,

pois já nem somos nós, somos o número perfeito:

UM.

Levou tempo, eu sei, para que o EU renunciasse

à vacuidade de persistir, fixo e solar,

e se confessasse jubilosamente vencido,

até respirar o júbilo maior da integração.

Agora, amada minha para sempre,

nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar

a melodia, a paisagem, a transparência da vida,

perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.


Carlos Drummond de Andrade

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